O medo frente à figura feminina não
é inédito, nem recente. Há, na mitologia judaico-cristã uma figura que
simboliza o medo frente à sexualidade feminina de maneira muito abrangente. Tal
figura é Lilith. De acordo com Rodrigues (2011), a simbologia dessa personagem
abarca o medo do homem ocidental frente a uma figura de mulher independente e
insurreta. Lilith teria sido criada por Deus anteriormente à Eva, no mesmo
momento em que Adão. Porém, sendo ela criatura vinda do pó pelas mãos divinas
tanto quanto Adão, ela não aceitava ser subjugada pelo homem, nem mesmo sexualmente.
Por isso, após núpcias no sétimo dia da criação, quando Adão vê-se aterrorizado
frente à falta de controle dele no ato sexual, por toda a luxúria e
voluptuosidade de Lilith, o primeiro casal se desfaz e essa mulher é
amaldiçoada por Deus. Porém, quando os anjos descem para matá-la ela os impede
lembrando que o próprio Deus a havia encarregado de cuidar de toda criança
homem até o oitavo dia e de toda criança mulher até os vinte anos. Para
puni-la, então, Deus a torna estéril. Tal mito, abarca diversas figuras
arquetípicas da sociedade judaico-cristã. Primeiramente, o medo frente à
sexualidade feminina. O homem quando destituído de sua lucidez pela luxúria
encontra-se num estado de temor. Em segundo lugar, o medo da figura estéril
que, ao mesmo tempo, é uma grande-mãe fálica.
Sant’Anna (1993) discute muito bem o
poder desse mito na poesia brasileira. Com variações, o autor encontra
representações desse medo masculino frente à chamada vagina dentada em diversas manifestações da literatura. No caso específico
da poética de Vinícius de Moraes, Sant’Anna discute tal aspecto na subsessão A grande mãe boa e má e seu filho-amante.
Ali, o autor atenta para a reincidência dessa figura de mãe ambígua, que ao
mesmo tempo parece atraente, num conceito edípico do amor e, no outro pólo,
assustadora por seu aspecto fálico, maligno e poderoso. No poema Agonia, de Vinícius de Moraes,
encontramos muito claramente esse lado maligno de uma mãe estéril, a qual
podemos associar com o mito de Lilith.
O eu lírico encontra-se em estado de
grande agonia, como mostrado no título do poema. Tal sentimento aflora graças a
uma cena que se desenrola: A mulher, Lilith, é vista de maneira ambígua: o
pavor é claro desde o início, no segundo verso o eu lírico afirma-se
amedrontado. No entanto, no quinto e no sexto verso percebemos indícios de um
estado anterior “Na minha angústia eu
buscava a paisagem calma/ Que me havias dado tanto tempo”. Há então uma
mudança de sentimento, o eu lírico encontrava-se em estado de calma frente
àquela mulher. Estado esse de quando o amor edípico é realizado nos cuidados
maternos para com o filho. No entanto, na segunda fase desse amor edípico, a
realização desse amor é imoral. Podemos perceber um estado de sonho, devaneio,
no poema, corroborado pelo cenário de deserto, pelas cenas desconexas em que o
eu lírico é engolido por essa figura de Lilith, a menção à palavra “sono” em
paralelo à morte, bem como pelo fato do poema ser encerrado com o verso “Quando despertei era claro...” (grifo meu). Nesse sonho,
o eu lírico divide-se entre o desejo edipiano por essa figura materna, advindo
do inconsciente e a repulsa causada pela proibição e o medo da castração
pertinente à segunda fase do complexo edípico. A agonia do título é causada por
esse sentimento ambíguo. Do qual se busca escapar, situação evidenciada pelos
versos em que o eu lírico afirma procurar se erguer e, percebendo que seus
movimentos eram inúteis, pois se encontrava em areia movediça, ainda tenta
escapar pela imobilidade. Podemos analisar inicialmente esse movimento como uma
participação nesse ato sexual que ocorre em sonho e, em seguida, devido á culpa
filtrada pelo consciente, a tentativa de negação pela imobilidade. Essa culpa é
evidenciada pelo termo “voragem”, o qual remete a um perigo religioso, o pecado
de desejar a própria Grande-mãe, Lilith. A associação á essa figura mitológica
também é corroborada pela marcada esterilidade da mulher do poema. A imagem do
deserto também é importante, na mitologia, Deus haveria amaldiçoado Lilith a
caminhar eternamente pelos desertos. Algumas culturas africanas afirmam que ela
anda pelo deserto nas costas de um camelo, procurando homens perdidos para
devorá-los após o ato sexual.
Para analisarmos o todo do poema, devemos recorrer ao ciclo vida-morte-vida, fortemente associado à figura feminina da deusa, também simbolizada por Lilith. Vinícius de Moraes, em Agonia, constrói uma imagem de vida, afinal, o "grande corpo branco" também é abrigo inicial, lugar de calma anterior, como já salientado. Após esse período de vida há a destruição. Tal destruição nas entranhas da figura feminina pode ser atribuída ao medo edípico, entremeado de desejo, que culmina nessa punição castradora, causando a morte, evidenciada pelo verso "Depois foi o sono, o escuro, a morte." E, por fim, a vida novamente em "Quando despertei era claro e eu tinha brotado novamente". Todo esse ciclo encerra-se no ambiente do sonho, ambiente propício à construção imagética freudiana.
Agonia
Vinícius de Moraes
No teu grande
corpo branco depois eu fiquei.
Tinha os olhos lívidos e tive medo.
Já não havia sombra em ti - eras como um grande deserto de areia
Onde eu houvesse tombado após uma longa caminhada sem noites.
Na minha angústia eu buscava a paisagem calma
Que me havias dado tanto tempo
Mas tudo era estéril e mostruoso e sem vida
E teus seios eram dunas desfeitas pelo vendaval que passara.
Eu estremecia agonizando e procurava me erguer
Mas teu ventre era como areia movediça para os meus dedos.
Procurei ficar imóvel e orar, mas fui me afogando em ti mesma
Desaparecendo no teu ser disperso que se contraía como a voragem.
Depois foi o sono, o escuro, a morte.
Quando despertei era claro e eu tinha brotado novamente
Vinha cheio do pavor das tuas entranhas.
REFERÊNCIAS:
RODRIGUES, Cátia
Cilene Lima. Lilith e o arquétipo do
feminino contemporâneo. São Paulo: Universidade Mackenzie, 2011.
SANT’ANNA,
Affonso Romano de. O canibalismo amoroso. Rio de Janeiro: Racco, 1993.
Autoria: Bruna Dancini Godk.