quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Lilith na literatura, uma análise de Agonia, de Vinícius de Moraes.



            O medo frente à figura feminina não é inédito, nem recente. Há, na mitologia judaico-cristã uma figura que simboliza o medo frente à sexualidade feminina de maneira muito abrangente. Tal figura é Lilith. De acordo com Rodrigues (2011), a simbologia dessa personagem abarca o medo do homem ocidental frente a uma figura de mulher independente e insurreta. Lilith teria sido criada por Deus anteriormente à Eva, no mesmo momento em que Adão. Porém, sendo ela criatura vinda do pó pelas mãos divinas tanto quanto Adão, ela não aceitava ser subjugada pelo homem, nem mesmo sexualmente. Por isso, após núpcias no sétimo dia da criação, quando Adão vê-se aterrorizado frente à falta de controle dele no ato sexual, por toda a luxúria e voluptuosidade de Lilith, o primeiro casal se desfaz e essa mulher é amaldiçoada por Deus. Porém, quando os anjos descem para matá-la ela os impede lembrando que o próprio Deus a havia encarregado de cuidar de toda criança homem até o oitavo dia e de toda criança mulher até os vinte anos. Para puni-la, então, Deus a torna estéril. Tal mito, abarca diversas figuras arquetípicas da sociedade judaico-cristã. Primeiramente, o medo frente à sexualidade feminina. O homem quando destituído de sua lucidez pela luxúria encontra-se num estado de temor. Em segundo lugar, o medo da figura estéril que, ao mesmo tempo, é uma grande-mãe fálica.
Sant’Anna (1993) discute muito bem o poder desse mito na poesia brasileira. Com variações, o autor encontra representações desse medo masculino frente à chamada vagina dentada em diversas manifestações da literatura. No caso específico da poética de Vinícius de Moraes, Sant’Anna discute tal aspecto na subsessão A grande mãe boa e má e seu filho-amante. Ali, o autor atenta para a reincidência dessa figura de mãe ambígua, que ao mesmo tempo parece atraente, num conceito edípico do amor e, no outro pólo, assustadora por seu aspecto fálico, maligno e poderoso. No poema Agonia, de Vinícius de Moraes, encontramos muito claramente esse lado maligno de uma mãe estéril, a qual podemos associar com o mito de Lilith.
O eu lírico encontra-se em estado de grande agonia, como mostrado no título do poema. Tal sentimento aflora graças a uma cena que se desenrola: A mulher, Lilith, é vista de maneira ambígua: o pavor é claro desde o início, no segundo verso o eu lírico afirma-se amedrontado. No entanto, no quinto e no sexto verso percebemos indícios de um estado anterior “Na minha angústia eu buscava a paisagem calma/ Que me havias dado tanto tempo”. Há então uma mudança de sentimento, o eu lírico encontrava-se em estado de calma frente àquela mulher. Estado esse de quando o amor edípico é realizado nos cuidados maternos para com o filho. No entanto, na segunda fase desse amor edípico, a realização desse amor é imoral. Podemos perceber um estado de sonho, devaneio, no poema, corroborado pelo cenário de deserto, pelas cenas desconexas em que o eu lírico é engolido por essa figura de Lilith, a menção à palavra “sono” em paralelo à morte, bem como pelo fato do poema ser encerrado com o verso “Quando despertei era claro...” (grifo meu). Nesse sonho, o eu lírico divide-se entre o desejo edipiano por essa figura materna, advindo do inconsciente e a repulsa causada pela proibição e o medo da castração pertinente à segunda fase do complexo edípico. A agonia do título é causada por esse sentimento ambíguo. Do qual se busca escapar, situação evidenciada pelos versos em que o eu lírico afirma procurar se erguer e, percebendo que seus movimentos eram inúteis, pois se encontrava em areia movediça, ainda tenta escapar pela imobilidade. Podemos analisar inicialmente esse movimento como uma participação nesse ato sexual que ocorre em sonho e, em seguida, devido á culpa filtrada pelo consciente, a tentativa de negação pela imobilidade. Essa culpa é evidenciada pelo termo “voragem”, o qual remete a um perigo religioso, o pecado de desejar a própria Grande-mãe, Lilith. A associação á essa figura mitológica também é corroborada pela marcada esterilidade da mulher do poema. A imagem do deserto também é importante, na mitologia, Deus haveria amaldiçoado Lilith a caminhar eternamente pelos desertos. Algumas culturas africanas afirmam que ela anda pelo deserto nas costas de um camelo, procurando homens perdidos para devorá-los após o ato sexual.
Para analisarmos o todo do poema, devemos recorrer ao ciclo vida-morte-vida, fortemente associado à figura feminina da deusa, também simbolizada por Lilith. Vinícius de Moraes, em Agonia, constrói uma imagem de vida, afinal, o "grande corpo branco" também é abrigo inicial, lugar de calma anterior, como já salientado. Após esse período de vida há a destruição. Tal destruição nas entranhas da figura feminina pode ser atribuída ao medo edípico, entremeado de desejo, que culmina nessa punição castradora, causando a morte, evidenciada pelo verso "Depois foi o sono, o escuro, a morte." E, por fim, a vida novamente em "Quando despertei era claro e eu tinha brotado novamente". Todo esse ciclo encerra-se no ambiente do sonho, ambiente propício à construção imagética freudiana.

Agonia
Vinícius de Moraes
No teu grande corpo branco depois eu fiquei.
Tinha os olhos lívidos e tive medo.
Já não havia sombra em ti - eras como um grande deserto de areia
Onde eu houvesse tombado após uma longa caminhada sem noites.
Na minha angústia eu buscava a paisagem calma
Que me havias dado tanto tempo
Mas tudo era estéril e mostruoso e sem vida
E teus seios eram dunas desfeitas pelo vendaval que passara.
Eu estremecia agonizando e procurava me erguer
Mas teu ventre era como areia movediça para os meus dedos.
Procurei ficar imóvel e orar, mas fui me afogando em ti mesma
Desaparecendo no teu ser disperso que se contraía como a voragem.

Depois foi o sono, o escuro, a morte.

Quando despertei era claro e eu tinha brotado novamente
Vinha cheio do pavor das tuas entranhas.

REFERÊNCIAS:
RODRIGUES, Cátia Cilene Lima. Lilith e o arquétipo do feminino contemporâneo. São Paulo: Universidade Mackenzie, 2011.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso. Rio de Janeiro: Racco, 1993.




Autoria: Bruna Dancini Godk.


domingo, 22 de setembro de 2013

Vem cá, te conheço?



Vem cá, te conheço?
Há certo tipo de encantamento maligno na convivência.  Talvez a pessoa x pudesse ter um ótimo papo sobre a transcendência dos elementos estéticos de um texto. Mas vocês acabam conversando paradoxalmente sobre qualquer coisa inútil, como falar mal de alguém. Talvez a pessoa y seja apenas um babaca. Mas a convivência coloca-o no mesmo círculo de x. Às vezes, a pessoa z poderia ser seu melhor amigo. Mas a pessoa z não está no seu círculo de convivência.
            E você sai da sua casa, do seu trabalho, da sua aula e tem coragem de parar sozinha naquele café. Aquele café bonito que tem toda uma atmosfera de filme. Que te dá vontade de recitar poemas ou fumar, mesmo você não fumando. Naquele café, há mais quatro ou cinco pessoas como você. Que poderiam estar na sua mesa. Que poderiam ser seus amigos de longa data. Mas você está preso ao seu circulo de convivência e o mais longe que chega é uma sugestão de amigo do facebook.
            E se, naquele dia, você decidisse sentar na mesa daquela estranha que usa roupas que você acha legais. Que está lendo um livro do Tchekhov que você já leu e queria discutir com alguém. E ela pediu um café que você sabe que não é o melhor, poderia indicar um outro. Mas acaba que as convenções sociais te fazem ficar na sua mesa. Ela ficar na dela. Imagina, uma menina ir puxar papo com outra menina. Onde foi parar sua heterossexualidade? Mas, talvez, você só estivesse atrás de uma conversa para fugir do encantamento maligno da convivência.

            Pago a conta e vou embora. Nem experimentei as empadas Caruso. Nem soube que aquela pessoa poderia querer desabafar. Pego o ônibus. Vou embora. Entro no facebook e começo uma conversa “você não sabe da última!”...


Se eu te convido...

Quartos de verdade são bagunçados. Quartos de verdade têm coisas. Que tipo de quarto só tem de coração e não tem livros inacabados. Não tem roupa jogada na poltrona e uma bolsa encostada em algum lugar? Que tipo de quarto não tem papel de bala escondido nos bolsos e bagunças que você não sabe porque ainda não jogou fora? O que é esse glamour decorativo que criaram de quartos que mais parecem hospícios, tão clean, tão organizado.
A minha bagunça é a minha sanidade. A cama está arrumada e é isso que importa para nós, não é? Os lençóis cheiram á shampoo. O edredom é macio. Qual o problema com meus xerox espalhados. Se parar para ler pode ser até que aprenda uma nova essência da vida.
É engraçado como nos espantamos ao irmos para o quarto. Não é pra ter essência de canela e decoração pós-moderna. É pra ter cheiro de mim e decoração de lembranças. Aproveita, eu deixei você até emprestar um livro da prateleira.
Quarto de verdade é bagunçado, mas é isso que atrai. É essa bagunça que tinha sido anunciada pela porta vermelha. Afinal, nenhum de nós quis ficar na sala, quis? Os melhores filmes estão no meu computador, não na tv. A intimidade de verdade está no modo como fui eu que pintei meus móveis de branco. E me senti importante.
No quarto você pode fazer de tudo. Não é só o que estávamos pensando. Também pode ser, mas essa parte do quarto já está resolvida, não é? Eu deixo você abrir meu guarda-roupa e ver minhas camisetas de ficar em casa. Vem, se eu te convido, você pode mexer.